Déjà vu: as críticas à Copa do Mundo no Brasil são muito semelhantes aos argumentos usados contra o Mundial na África do Sul. Na época da Copa na África do Sul, ficou claro que os prognósticos sobre os efeitos econômicos positivos eram totalmente exagerados (veja WM 2010 – Afrika am Ball). No final das contas, os contribuintes e até mesmo as empresas foram obrigados a pagar muito mais. O número de turistas ficou bem abaixo do previsto e não se criaram tantos novos empregos assim, principalmente para os tantos jovens sul-africanos. No Brasil, o que deverá acontecer com estádios como o de Manaus? Quem vai bancar, mês a mês, os altíssimos custos de manutenção? O estádio de Mbombela foi construído especialmente para a Copa em Nelspruit, na África do Sul. Custo total: 100 milhões de euros. Agora, o “elefante branco”, como os estádios ociosos são chamados na África do Sul, fica vazio pelo menos 350 dias por ano, e a prefeitura corre o risco de ter que arcar com custos de manutenção de 450 mil euros por ano. O sucesso de Shirley Bassey, “History Repeating", seria uma trilha sonora adequada.
O debate – e, mais ainda, a batalha política nas ruas do Brasil em torno da utilidade e do custo de megaeventos – acendeu-se há muitos meses. O que já se tornou realidade na África do Sul ameaça acontecer agora também no Brasil. O ganho econômico para a coletividade é reduzido. Os custos – principalmente o preço social – são elevados. E os preparativos para o Mundial de Futebol feriram direitos humanos nacionais e internacionais, principalmente o direito à moradia. Organizações da sociedade civil no Brasil estimam que no mínimo 170 mil pessoas serão atingidas pelas remoções no curso das obras nas cidades (http://br.boell.org/pt-br/2013/01/18/megaeventos-e-violacoes-de-direito…). O interesse coletivo ou riscos de segurança podem exigir remoções forçadas. Mas o direito internacional caracteriza esse tipo de operação como exceção que deve ser muito bem fundamentada face à garantia ao direito de moradia. Além disso, existem regras claras fundamentadas no Direito Internacional e também nas leis brasileiras: as pessoas devem ser informadas amplamente e com antecedência. Devem participar do processo, devem ter aconselhamento jurídico e segurança jurídica, as indenizações devem ser adequadas e garantir no mínimo o padrão da moradia antiga. De preferência, as novas habitações devem ser disponibilizadas próximo às antigas. As remoções não podem ser feitas à noite ou com mau tempo. Mas autoridades brasileiras feriram praticamente todos esses princípios nas cidades-sede da Copa.
O estatuto das cidades que vigora para todos os municípios brasileiros com mais de 20 mil habitantes assegura aos moradores o direito a uma “cidade sustentável” e a uma política urbana democrática e participativa. Mas estruturas urbanas que cresceram lentamente estão sendo destruídas agora por causa da Copa e das Olimpíadas de 2016 e deixam vislumbrar um novo modelo de cidade. Esse outro modelo abre as portas aos investidores, e é para isso que os atuais moradores precisam sair. É um modelo que aposta numa política de tráfego que atende prioritariamente as rotas turísticas em vez de tentar suprir as necessidades e demandas da maioria da população. E é um modelo que adota uma política de segurança que pouco contribui para garantir os direitos de cidadania das pessoas, preferindo assegurar a lógica de eventos e de investimentos. Assim, a cidade age como uma empresa privada na competição, em que, no entanto, os cofres púbicos correm o risco financeiro e as empreiteiras e empresas de turismo ficam com os lucros. O Congresso brasileiro e as autoridades aprovaram numerosas exceções de regras democráticas importantes nos últimos cinco anos em favor de interesses privados. Isso vai da renúncia ao princípio de licitações transparentes para obras públicas até o aumento do limite de endividamento dos municípios.
Torna-se evidente o quanto tem a ver com democracia a realização de megaeventos como o Mundial de Futebol. Animador, para o futuro da democracia brasileira, é o fato de que são justamente os brasileiros loucos por futebol os que foram às ruas para lutar pelos seus direitos sociais durante a Copa das Confederações em junho de 2013. Por isso, parte da conta não fecha para o governo. Diferentemente do que ocorreu na África do Sul – e ainda mais no verão de conto de fadas da Alemanha, em 2006 – o ganho em imagem começa a ser questionado no Brasil. Em vez das imagens coloridas de Carnaval, o governo agora teme um gol contra quando as imagens de confrontos entre manifestantes e a polícia, conturbadas por gás lacrimogêneo, passarem a ornar as primeiras páginas da imprensa internacional durante a Copa. Os brasileiros amam o futebol e esperam que sua seleção se torne hexacampeão. Mas os manifestantes – ao menos a geração mais jovem – apostam em sinais claros: querem um Brasil democrático e principalmente socialmente mais justo, que finalmente resolva a desigualdade histórica, sobretudo nos setores da educação e da saúde públicas. Por isso, não aceitam simplesmente que mais de oito bilhões de euros sejam gastos para uma Copa.
Originário da França, o secretário-geral da Fifa, Jerôme Valcke, acabou revelando o seu entendimento particular de democracia. Antes ainda dos protestos de junho de 2013, ele afirmou: “Menos democracia, às vezes, é melhor para organizar uma Copa. Quando você tem um chefe de estado forte, que pode decidir, como talvez Vladimir Putin na Rússia em 2018, é mais fácil para nós, organizadores, do que em um país como a Alemanha, onde você tem que negociar em várias esferas.” No Brasil, a estrutura política também teria sido difícil, segundo o dirigente da Fifa. “Há pessoas diferentes, movimentos diferentes, interesses diferentes e é um pouco difícil organizar a Copa do Mundo nestas condições”, disse Valcke.[1] Ou seja: as numerosas interferências e as agressões às leis no Brasil, sugeridas e impostas pela Fifa, não bastaram. Ainda bem que a própria Fifa expressou isto de maneira tão inequívoca: em sua atual condição e com seus métodos de trabalho atuais, ela própria representa um risco para a democracia. É bom que os brasileiros se defendam contra isso. Até para proteger o futebol.